A estrela de Hollywood Bette Davis ganha os palcos num espetáculo impactante, que conta a sua carreira, seus sucessos e fracassos profissionais e pessoais, mas sem se ater à sua biografia cronológica e convencional. No monólogo “O diabo em Mrs. Davis”, de Jau Sant’Angelo, o público confere uma figura icônica, com todo o seu talento, ferocidade e humor ácido, oscilando entre a força e a vulnerabilidade, e motivando no espectador reflexão, incômodo, emoção e risos. Sob o concepto provocador de Anselmo Vasconcellos, a atriz Nina de Pádua dá vida – brilhantemente, é preciso frisar – à lendária Bette Davis, de personalidade forte, conduzindo a plateia aos labirintos de uma diva em crise. Aqui, Nina encara o desafio de fazer o seu primeiro solo, mas sem pressão, segundo ela. “Eu estou tranquila porque eu fui muito bem preparada pelo Anselmo, porque eu confio que a Bette é quem leva o barco. A minha Bette Davis é rock’n’roll”. O espetáculo, que estreou no dia 3 de julho, teve a sua temporada prorrogada até o dia 30 de agosto, com sessões sempre aos sábados, às 20h, na Sala Provocações do Barra Point Shopping, na Barra da Tijuca.
Nesta proposta ousada nos deparamos com uma atriz veterana, isolada em seu camarim, que se vê às voltas com os fantasmas de uma carreira marcada por aplausos e silêncios. No limiar entre o real e o delírio, ela dá voz às memórias que insistem em retornar — paixões não vividas, papéis recusados, a juventude que lhe foi arrancada sob os holofotes. Com ironia, desespero e lucidez, Mrs. Davis se debruça sobre os limites entre a arte e a loucura, o palco e a vida, enquanto um visitante inesperado — uma fã? O público? Ela mesma? — a confronta com suas verdades mais íntimas.
Vasconcellos: ‘Concebemos uma instalação, nos moldes das artes plásticas’
Em cena, Nina não se limita ao palco, percorre todo o teatro, por muitas vezes, ficando bem próxima do público. Tudo muito bem pensado de acordo com o local onde tudo acontece. “Concebemos uma instalação, nos moldes das artes plásticas, utilizando todos os elementos presentes no ambiente: a cortina, o palco, a parede, a escada, a penumbra, o desaparecimento súbito. A personagem some da vista do público em diversos momentos do espetáculo, intercalando-se com pausas musicais e silenciosas, e momentos de repouso corporal. Tudo isso integra um trabalho que se classifica como dança-teatro, amplamente difundido por Pina Bausch e Denise Stoklos, com seu teatro essencial”, explica Anselmo Vasconcellos, que aponta como tem sido a reação de quem está assistindo: “É bastante interessante. As pessoas não acompanham necessariamente o desaparecimento da personagem, mas permanecem atentas, valorizando a audição em detrimento da visão. A voz circula pelo espaço, e não é preciso acompanhar visualmente para compreender o que acontece. A percepção através da audição tem sido marcante”.
Entre os seus últimos trabalhos no teatro, Vasconcellos destaca o monólogo “A Cafona”, no qual interpretava uma mulher sem recorrer a artifícios externos, sem figurino ou caracterizações. A representação do feminino era interior, não exteriorizada. O espetáculo ficou em cartaz por quase dois anos e foi premiado no Festival Nacional de Teatro de Duque de Caxias. Atualmente, está envolvido em diversas séries que serão lançadas no segundo semestre.
Nina: ‘Eu comemoro os meus 70 anos dando cambalhota em cena’
Além de desafiador, o momento é especial para Nina, que está celebrando 55 anos de carreira e 70 de idade: “Eu comemoro os meus 70 anos dando cambalhota em cena. É um privilégio para poucos, uma honra para mim. Deus é muito generoso comigo”, vibra ela, que, literalmente, se joga em cena: corre, rola, canta, emociona-se, ri. E a resposta do público tem sido imediata, dando ainda mais combustível para se aventurar neste solo, que torce para que tenha vida longa. “Eu tenho visto pessoas comovidas, o que me comove também e me dá muito, muito, muito orgulho desse trabalho”.
Com tantas obras de sucesso no currículo, Nina ressalta algumas: no teatro, a peça “Calabar – O Elogio da Traição”, de Chico Buarque e Rui Guerra, que foi censurada pela ditadura militar em 1973 – quando conheceu Anselmo Vasconcellos. E, claro, o premiado grupo de teatro Asdrúbal Trouxe O Trombone, inesquecível nos anos 70, do qual fez parte. Na TV, as novelas “A Gata Comeu” (Globo, 1885) e “Dona Beija” (Manchete, 1986). E no cinema, destaca “O segredo da Múmia” (1982), também feito pelo Anselmo; e “Menino do Rio” (1982), um marco em sua geração.
A palavra do autor
Para o autor Jau Sant’Angelo, escrever sobre Bette Davis é um exercício de coragem. Não apenas pela figura que representa na história do teatro, da TV e do cinema mundiais – ela foi indicada dez vezes ao Oscar e ganhou duas estatuetas por sua atuação nos filmes “Perigosa” (1935) e “Jezabel” (1938) -, mas porque enfrentava o sistema. “Bette nunca foi uma mulher dócil — e talvez por isso permaneça tão viva, tão necessária. Ela desafiou os estúdios quando ninguém ousava, impôs respeito com talento e tenacidade, e pavimentou o caminho para que mulheres pudessem existir em cena com complexidade, imperfeição e poder. Em um tempo que premiava rostos bonitos e vozes obedientes, Bette Davis foi intensidade, fúria, sarcasmo e inteligência. Foi mulher em estado bruto, sem filtro. Escrever sobre ela é também escrever sobre os bastidores da glória, os altos custos da fama, o envelhecimento feminino na indústria e o preço de ser livre num mundo que cobra submissão. É revisitar o passado com os olhos do presente, e perceber que a luta dela continua sendo nossa”, conclui ele.
Jau Sant’Angelo tem a sua base artística no grupo Nós do Morro, do Rio de Janeiro. Ao lado de Ticiana Studart, assinou a dramaturgia do espetáculo “Amargo Fruto – A Vida de Billie Holiday”, protagonizado por Lilian Valeska, Vilma Mello e Milton Filho. E também é autor da peça “No Escuro”, com Vitória Furtado e Sidcley Batista, que mergulha na solidão e nos silêncios de uma mulher afastada dos palcos. Recentemente, escreveu o solo “Beethoven – Lembranças do Silêncio”, interpretado por Jandir Ferrari, com direção de Augusto Cezar, uma delicada costura entre música, memória e superação.
SERVIÇO – O DIABO EM MRS. DAVIS
Autor: Jau Sant’Angelo. Concepto: Anselmo Vasconcellos. Atuação: Nina de Pádua. Sinopse: Uma atriz veterana, isolada em seu camarim, se vê às voltas com os fantasmas de uma carreira marcada por aplausos e silêncios. No limiar entre o real e o delírio, ela dá voz às memórias que insistem em retornar — paixões não vividas, papéis recusados, a juventude que lhe foi arrancada sob os holofotes. Com ironia, desespero e lucidez, Mrs. Davis se debruça sobre os limites entre a arte e a loucura, o palco e a vida, enquanto um visitante inesperado — uma fã? O público? Ela mesma? — a confronta com suas verdades mais íntimas. Um solo visceral, onde a atriz Nina de Pádua entrega corpo e alma a essa mulher fragmentada, num mergulho emocional construído com sensibilidade pelo texto de Jau Sant’Angelo e pelo concepto provocador de Anselmo Vasconcellos. O Diabo em Mrs. Davis é teatro como ritual de exorcismo — um acerto de contas entre o que fomos e o que restou de nós.
Temporada até o dia 30 de agosto
Somente aos sábados, às 20h.
Sala Provocações do Barra Point Shopping – Avenida. Armando Lombardi 350, 3º piso, Barra da Tijuca (ao lado do Metrô Jardim Oceânico)
Capacidade: 60 lugares
Duração: 55 minutos.
Classificação: 14 anos
Ingresso: R$ 60 e R$ 30 (meia entrada)



